terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Diário de Batonelli - Relatos de Uma Amizade Perneta




São Paulo, 25 de dezembro de 2001.

Querido diário!

Não. “Querido diário” é muito feminino.
Vou te chamar apenas de “diário”. Fica mais adulto. Firme.
E também não há motivos para que eu te “chame” por algum nome, afinal de contas, um caderno não compreende nada do que os humanos escrevem nele.
Quem lerá isto tudo depois será eu: Wendell, o próprio.
Eu poderia começar com “Querido Wendell”, mas sei lá. É muito estranho conversar comigo mesmo através de algumas folhas de papel.
Nesses casos, geralmente, eu uso o espelho.

Para iniciar esse registro, devo começar contando do dia em que eu o encontrei no quarto da Marina ontem de manhã, depois que cheguei do campinho de futebol.
Era a véspera de hoje. A véspera do natal.

O natal é uma data especial.
Eu quis dizer: o natal é uma data comercial.

O natal é uma data caridosa. E seria a única do ano?
O natal é injusto, isto é!

O natal é muito mais do que uma reunião familiar entre parentes distantes, antipáticos ou que, de tão simpáticos, tornam-se chatos.
O natal é muito mais do que presentes embaixo de uma árvore enfeitada com bolas brilhantes daquelas que mal cabem na sala, luzes pisca-pisca coloridas ou enfeitezinhos bonitinhos.
Natal é muito mais do que um Papai Noel de barba falsa sentado em shoppings espetacularmente produzidos para atrair consumidores; muito mais que um simples velho gorducho carregando um saco vermelho cheio de presentes comprados por nossos próprios pais.

Comprar. Comprar.
Gastar. Gastar.
Consumir. Devorar...

Este é o natal que conhecemos.

Diário, escrevi esse resumo sobre o natal de uma forma poética.
Aprendi coisas legais na escola neste ano que se finda.
Sou ótimo em redação. A professora de português, Dona Val, é quem diz! Espero que ela continue lecionando na quinta-série...

Entretanto.
É estranho, mas eu deveria estar feliz com o natal nesses moldes capitalistas, afinal de contas, tenho nove anos de idade e o que eu mais gosto é de ganhar presentes. Tanto faz se é no natal, no dia das crianças, no meu aniversário ou qualquer outra data que favoreça o gasto salarial de nossos pais.

Ontem eu ganhei um carrinho de controle remoto.

Legal. Eu me esforcei a sorrir diante do meu pai. O coitado estava mais feliz do que qualquer um naquela sala. E olhe que gastou mais da metade de seu décimo terceiro com as traquitanas natalinas, comes e bebes da ceia e um carrinho de controle remoto vermelho, cheio de detalhes e com uma etiqueta miúda contendo o preço (R$ 249,99) raspado com dificuldade. Talvez mamãe quisesse retirar o adesivo, mas vejo que não conseguiu.
Que fique bem claro, diário: eu não pedi este presente.
Eu queria um simples pião ou uma pipa sem linha que voasse com a força do pensamento, piruetando ao vento.

Já inventaram pipas assim?

Acho que não. Talvez por isto o meu pai tenha opinado trocar 250 reais (esse povo complica com os quebrados de 99 “vírgula” 99) por um brinquedo sem fio que anda com a força do pensamento de uma bateria alcalina.
O pião ou a pipa sairiam mais baratos. A última pipa que comprei custava menos de 30 centavos no bazar da esquina. Mas meu pai diz que é perigoso demais.
O que há de tão perigoso em uma pipa voando e um garoto feliz a direcionando?
Pensando bem, acho que o perigo está é quando elas despencam.
Ontem à tarde o Bruninho da rua de baixo brigou com o Luiz quando ambos agarraram a mesma linha, ao mesmo tempo, e berraram juntos:
“Ta na mão”
A porrada comeu solta e a pipa estava na mão é do Jorjão, o garoto mais velho da vila de baixo. Ele também gosta de pipas.

Eu ainda gosto de pipas. E também de brinquedos mais simples que, como dizem meus avôs, divertem mais que os vídeo-games de hoje. Eu concordo com eles...

Pensei em trocar o meu carrinho de controle remoto com o jogo de damas que meu primo ganhou da minha avó.
Meu primo se chama Roberto. E ele ficou feliz quando estava tudo decidido.
O jogo de damas ainda estava embrulhado, pois ele já sabia que o ganharia. Ele se entusiasmou quando eu quis trocar pelo meu presente desembrulhado, mas meu pai não deixou.
Acho que é porque foram presentes dados com muito carinho... Ou porque o meu custou caro mesmo! Mas eu ficaria feliz em ganhar um jogo de damas.
Minha avó me deu um par de meias. Eu realmente estava precisando.
Roberto, que tem a mesma idade que eu, chorou durante toda a ceia de natal, emburrado em um canto enquanto a tia Sônia dizia que “Nunca mais passariam o natal em casa”. Acho que ela ficou um pouco estressada com todo aquele burburinho, com todo aquele gasto de fim de ano.
Ela me deu um bonequinho do Batman. O preço na caixinha era mais sublime que o contido em meu carrinho de controle remoto: R$ 2,99 apenas. Tava raspado também. Os adultos não conseguem tirar as etiquetas com preços e deixam lá, pensando que nós, crianças, somos burras o suficiente para não entender que se trata do custo da nossa diversão e do prejuízo que as datas comemorativas mais aguardadas causam a eles.
Não consigo me imaginar adulto...
E vou ser bem sincero: ainda não tirei o carrinho da caixa.
O Batman já batalhou contra meu exército de super-homens. Aliás, o Batman daquela noite de natal fora o segundo brinquedo barato que eu ganhara em toda a minha vida. Talvez o terceiro...

Tá bom, exagerei, mas:
Ou minha tia ficou pobre ou meu pai é quem ficou rico?
Não tem nem um dia de vida, mas já é o meu brinquedo favorito.

(Rimou! – não foi proposital).

Inclusive, este super-herói de plástico fez-me companhia durante a maior parte do tempo neste feriado solitário. Os brinquedos mais baratos me parecem mais divertidos... Roberto diz que eu sou bobo e que, se pudesse, trocaria todos os bonecos de 1,99 dele por meus carrinhos de controle remoto e outras tecnologias importadas! Eu até aceitaria, mas meu pai jamais permitiria...

Depois do almoço em família, meus primos e parentes foram embora.
Uma pena eu não poder jogar damas em meio ao vácuo que este dia deixou: meus amigos – todos, praticamente, dos poucos que tenho – estão aproveitando as férias em outro lugar. Por isto tenho que aguardar até amanhã para fazer o mesmo e um joguinho daqueles seria um ótimo passatempo. Minha mãe disse que no meu aniversário comprará um jogo de xadrez, mesmo eu insistindo que eu quero é um de DAMAS...

Que tédio.

Por enquanto, diário, vou ficando por aqui. Já são onze e meia da noite (vinte e três horas e trinta minutos para ser mais exato) e ta na hora de dormir, ainda que o sono não tenha chegado.
Estou ansioso em passar o resto das férias no sítio do meu avô.
E estou feliz em ter estreado estas folhas suas, diário, que um dia a minha irmã estrearia.

Até amanhã, pois hoje eu já escrevi demais!

...

Olá.
Aqui quem vos escreve é o leitor.
Em paralelo ao diário do personagem, relato nas entrelinhas o desenvolvimento da incrível história de amizade entre um menino e um “saci” e sua tamanha compatibilidade familiar.

Wendell Batonelli.
Ele, definitivamente, não é um garoto “normal”.
Seus pais: Vera e Arthur acreditam que o filho tenha habilidades especiais; um garoto superdotado na família. O único.
Com apenas nove anos de idade, Wendell era o número um de sua classe escolar. Cursava a quarta série do primário, sentava na primeira carteira da segunda fileira do corredor que dava à frente da mesa dos professores, e suas provas, na grande maioria das vezes, vinham estampadas com um dez de extrema excelência. O “CDF” da sala, como dizem. O mais cobiçado, o mais amado, o mais cobrado... O mais, o mais...
Mas “grandes poderes requerem grandes responsabilidades”. Poderes.
O seu poder era poder mais do que oitenta por cento de alunos da Quarta Série 2, turno matinal, da Escola Senador Armando Cunha podiam.
Certo. Nem ele mesmo entende esse seu dom de se dar bem nas provas e no carisma da grande maioria, até porque o “fundão” detesta a sua conduta de bom moço. Pelo menos se livrou das práticas bullying de Henrique, o valentão da quarta série que continuará com esta denominação enquanto o restante da turma cursaria a quinta série no ano seguinte. E faltavam poucos dias para o ano novo. Um pouco mais para o retorno às aulas. Fato.

O restante de férias seria compensado no sítio de Durval, o avô que esquecera o presente do neto em Minas Gerais, na roça, e para compensar o erro, juntou algumas moedas e trocou por um par de meias na primeira loja que viram aberta na noite em que ele e a vovó chegaram a São Paulo para o natal. O presente de Roberto, o primo, fora o jogo de damas; o de Aline, a prima de dezesseis anos, uma Barbie. É claro que a menina detestou. Em sua idade, a boneca já não fazia parte das brincadeiras. Mas os avós sempre a considerariam uma criança.
Laís, a prima de dez anos, irmã de Ailton, dezessete, ganhou uma bolsa colorida, com estampas floridas que iam das alças às laterais. Mais tarde, trocou-a pela Barbie da prima. Ailton, por sua vez, ganhou uma camiseta do clube de futebol Atlético Mineiro e recusou-se a aceitar quando o avô jurava acreditar que ele torcesse ao time alvinegro.
— Não, vô! Sou corinthiano...
A cara de espanto de Durval era notável ao fitar o mesmo olhar furtivo e errôneo de Dona Armênia, sua esposa de longa data.
— Confundi. Times semelhantemente monocromáticos! – não soou como uma ofensa, mas o neto frustrou-se.
Rapidamente mudaram de assunto. Os presentes naquela noite não estavam tão certeiros. Talvez o motivo tenha sido o ano conturbado que se aproximava do fim. Bagunçou a cabeça de todos.

– MEMORANDO –
Wendell ganhou um carrinho de controle-remoto do pai;
Roberto ganhou um jogo de damas da avó.
Os dois foram proibidos de trocarem os presentes e o primo chorou a noite inteira.
Aline ganhou uma Barbie que logo fora trocada pela bolsa de Laís.
E Ailton ganhou uma camiseta de um time que não torcia.

Foram estes os presentes mais equivocados de todos os natais!

Para exemplificar as coisas:
Wendell é filho de Vera e Arthur, e irmão de Marina (a história dela será contada dentro em breve).
Tia Sônia é irmã de Vera e tem dois filhos: Roberto, de nove anos e Aline, de dezesseis. É casada com Aroldo, que não estava presente na ceia por conta do serviço de vigia em um condomínio na zona sul. Estava de plantão naquela noite em mais um natal longe da família.
Tio Tobias é casado com Carmem e tem três filhos: Laís, Ailton e Andressa, de vinte e três anos (ela ficou alguns minutos na casa da tia Vera, mas rapidamente saiu com o namorado Victor – sem ganhar presente, diga-se de passagem, apenas vovó comentou que compraria algo pra ela na manhã seguinte).
Simplificando mais ainda (ou confundindo):
Vovô Durval e vovó Armênia tiveram cinco filhos, dentre os quais apenas Vera, Sônia e Tobias estavam reunidos naquela ceia. Os demais: Regina e Durval Junior não compareceram.
Regina é viúva e tem quatro filhos: Breno, dezoito anos, Gustavo, quinze, Francielle, doze e Marília, sete. Moram em Varginha, Minas Gerais, a alguns quilômetros do sítio dos pais, em Cambuí. Apenas Breno mora em Curitiba e batalha para conseguir alguma bolsa de estudo em alguma faculdade. Regina é a filha rebelde de Durval e Armênia. Orgulhosa e egoísta, detesta os irmãos por achar que eles a consideram uma pessoa desprezível. Coisas de família. Vai entender!
Durval Junior mora no exterior, em Londres, na Inglaterra há exatos quinze anos, após conhecer e engravidar Mary Lane, uma britânica que fazia intercâmbio em uma famosa agência de turismo de São Paulo. O rebento deles é Jeffrey, quatorze anos. Esteve no Brasil apenas duas vezes após residir na Europa. Em uma delas, Jeffrey o acompanhou e conheceu os avós, os primos e tios. Isto quando tinha onze anos.
Regina bajula Durvalzinho desde pequena, mas Sônia, sua irmã mais velha, insiste em acreditar que a ovelha negra esteja mais interessada no dinheiro do irmão do que na amizade fraterna propriamente dita. Está aí uma das causas do conflito familiar que ronda os Batonelli...

Espero que a simplificação tenha ajudado.
A família não chega a ser tão grande, mas a imensidão da relação entre eles é que complica.
Wendell conta mais de sua convivência conforme avança as páginas de seu diário; e dispus-me a ler seu cotidiano rabiscado em letras miúdas e desenvoltas no minúsculo caderninho rosado.

Obs: O garoto encaparia o diário com uma folha azul-marinho em dois dias.

Desculpe-me a curiosidade e impaciência.
Cocei a mão de vontade em querer saber qual é o desfecho da crônica final. E realizei esse desejo insaciável, mas a última página estava em branco.
É claro que já terminei a leitura completa, mas esta coceira me ocorreu após a leitura de, mais ou menos, cinco datas descritas no diário. Eu já sei o final. O meio e o começo também. Aliás, sei de coisas que vão além do imaginário do inocente Wendell. Coisas estas que se esvaíram em seu subconsciente. Coisas que não foram anotadas.
Eu sei.
Para que você entenda o que quero dizer, deve saber primeiro o que o menino escreveu no segundo dia de sua aventura inicial.
Posteriormente, os fatos se tornarão claros.
Basta um vislumbre pelo mundo surreal que o garoto criou dentro do contexto fantástico de sua vivência no interior de Minas Gerais:
“Finalmente, as férias propriamente ditas!”
Palavras do autor.
Eu só quis antecipar a euforia proposta logo ao início da prosa no segundo relato do garoto.
O caderninho pareceu brilhar quando li estas páginas:

Cambuí, 26 de dezembro de 2001.

Diário.

Finalmente, as férias propriamente ditas!

Hoje eu acordei feliz. Depois de tanto rolar na cama te observando no escuro e imaginando o que eu escreveria neste dia tão especial...
Acordei nove horas da manhã. Se minha mãe não me sacudisse, com certeza eu acordaria mais tarde. Mas ela não faria isto comigo, afinal de contas, enchi os ouvidos dela por um longo tempo com pedidos frequentes de que eu pudesse passar as férias de fim de ano no sítio do vovô Durval.
Eis me aqui. Estou respirando o mais puro ar mineiro.

Adoro esse lugar: Cambuí, Minas Gerais.
Notou o cabeçalho?

Saímos de São Paulo às 10 horas e 30 minutos.
A rodoviária do Tietê nunca me proporcionou fascínio... Até esta manhã!

Foram as duas horas de viagem mais curtas da minha vida.
Nunca desejei tanto estar nesta cidadezinha.
No fundo eu sei que algo nela me atrai. Não sei se é o verde, as montanhas, as cachoeiras, a hospitalidade. Sei lá.
Só sei que ela nunca me pareceu tão atraente!

Você, diário, não consegue ver, mas eu não consigo parar de sorrir.
Pareço um bobo.
Quando olho da janela do quarto para as montanhas, sinto-me intensamente vivo.
Poucas pessoas têm esse privilégio.
Estou aproveitando cada segundo.

No momento, grilos fazem serenata no terreno. Já é noite.

A primeira coisa que fiz quando cheguei foi comer o bolo de fubá da minha avó. Ela insistiu em fazer um novo, mas não resisti àquele delicioso pedacinho de céu que encontrei num recipiente em cima da mesa. E amanhã terá pão de queijo! Uau!
Depois, fui até a gruta na parte baixa do sítio. Vovô Durval me levou até lá.
Chupei manga diretamente do pé. Que delícia.
Fiz tanta coisa, que não sei se caberia aqui. Se eu não parar, transformo-te em livro, diário.

Hoje, no jantar, comi uma sopa de quirela. Eu não gosto muito, mas vovó Armênia sabe conquistar meu paladar.
Não vejo a hora do almoço de amanhã chegar.
Comida mineira feita por minha avó, não tem igual.
Ela me prometeu um feijão tropeiro do jeito que eu gosto: bem temperado! Hummmm... Já consigo sentir o gosto.
Ah! A sobremesa será doce de leite com geléia de morango.

Sinceramente, eu estou no paraíso.

Não preciso simplificar tanta coisa. Minha emoção em estar neste pedacinho de céu já diz por si só.

Vou ficando por aqui.
Quero dormir rápido para que amanhã chegue logo.
Quando o galo cantar, quero estar de pé!

Até amanhã!

Continua...

POR RICARDO MICHILIZZI