quarta-feira, 16 de setembro de 2009

[Conto] ÁRVORE FILOSOFAL – A LENDA DA TUPUACA (RUNAS PERDIDAS DE URAMESH)

Os olhos brilhantes, dourados, apreciavam a relutância do objeto em mãos a cintilar na escuridão que circundava a fornalha acesa. Os dentes careados do alquimista saltavam à arcada. O sorriso a triunfar seu fascínio. Os longos cabelos cor de banana titubeavam eufóricos, curvados sobre as mãos trêmulas do molambento embriagado que segurava com firmeza o rijo pedaço de um rochedo minúsculo, incolor, de intensa luminosidade.
A pedra filosofal.
O simples fato de ter conseguido transformar uma lasca maleável de ouro na fórmula mais desejada de todos os alquimistas frustrados de Aatuma era motivo suficiente para passar noites na sarjeta após seguidas sessões comemorativas e muito rum-noscaz em bares camponeses.
O problema da embriaguez está na descoberta da ressaca, onde toda a verdade encontra o subconsciente, revelando o erro cometido enquanto alterado: sua boca grande, suja e linguaruda fofocou sua majestosa obra.
Logo seria caçado por uma legião de predadores.
A fuga permitiu ao alquimista fedorento carregar apenas sua espada auto-forjada e um saquinho bem amarrado, tendo em seu conteúdo uma pedra descolorida.
Na mesma noite, sua morada fora incendiada posteriormente a um saqueio realizado por caçadores de recompensas dos arredores da cidadela de Yvuana; todos com o mesmo objetivo: possuir o minúsculo rochedo mágico que Goako Mull, o deserdado alquimista fujão, criara.
Obcecados, fundaram a Aliança Filosofal – uma forte infantaria camponesa que continha membros em diversos pontos estratégicos do continente aatumano. O alquimista não teria bifurcações a seguir. Estava, praticamente, encurralado.
A desesperada busca interior de Goako surgia a cada furtivo passo que dava em meio a vilarejos. Adquiriu autoconhecimento enquanto permanecia na penumbra, agindo entre as sombras e se alimentando de monitores – seres asquerosos e subterrâneos, semelhantes a répteis humanos, canibais, e que também devoravam escravos gioneses, sua melhor refeição; transformou-se em um homem reflexivo e habilidoso, aprendendo com o ofício inevitável em permanecer sigiloso durante sua jornada ambivalente, na corda bamba entre o bem e o mal; a verdade e a farsa; a vida e a morte.
O ponto final de seu martírio: Tupuaca. Cidade interiorana famosa por sua população traidora.
Viu-se em um beco sem saída. A linha final. O desfecho.
Ninguém queria a sua cabeça. Todos queriam a sua pedra.
Mas todos desejaram a sua cabeça quando não encontraram a bendita com o alquimista soturno. Uma aura negra o envolvia – resultado de constante perigo vivido, de psique afetada e de um sentimentalismo alheio ignorante e egoísta. Não existia mais aquela ingenuidade no olhar. Tudo se transformara em ódio, repulsa.
Incompatibilidade obsessiva.
Gigantes e machados a lhe ameaçar com tamanha superioridade e subestimação a sua pessoa; ali, encolhido ao centro de um círculo muscular. Ânimos aflorados, circundando o frenesi anterior à captura da presa.
Goako retirou a pedra filosofal do saquinho gasto e ergueu-a.
Sim, estava com a preciosa. A cobiçada. Era hábito da mesma tornar-se invisível quando ameaçada. Uma poderosa desconhecida.
Os olhos devoradores avançaram em lâminas e urros. A fúria chegara ao ápice: a multidão raivosa; gladiadores hostis; confundiam-se dentre o redemoinho de hormônios vingativos, gulosos, a se chocar. No âmbito de fatiar o desgasto alquimista e conquistar a tão sonhada pedra filosofal, aquela que se perdera ao chão de pesados pés entrelaçados, sugada ao solo terroso que estremeceu eficaz.
Uma poeira densa ergueu-se sorrateira e pairou a meia-cintura dos homens aglomerados e silenciosos. A curiosidade era perceptível. O tremor incessante fez surgir, logo abaixo do corpo estático de Goako Mull, um caule translúcido que formou galhos envolventes, erguendo-o alguns metros acima das cabeças vertiginosas dos guerreiros.
Numa velocidade impressionante, brotou-se ali uma árvore que, a certo ponto, imobilizou-se e ganhou uma coloração naturalmente marrom-esmeralda, em musgos e lodo.

Relatos descritos em antigas runas dão diferentes desfechos à mesma história, sendo apenas uma considerada verdadeira: Goako fora engolido pela planta e seu sangue se fundiu entre a seiva viva e seu espírito jaz por entre as raízes, folhas e galhos regeneradores. Naquela fatídica data vespertina, os guerreiros foram amaldiçoados com uma magia esverdeada que se exalou da poeira nebulosa que pairava ao local, esforçando-os a cometerem suicídio coletivo, manchando as terras da cidade com o sangue dos derrotados.
A árvore, por sua vez, tornou-se sinônimo de superstições e, reza a lenda, que seus galhos contêm poderes inimagináveis e que, se fundidos a esferas filosofais artificiais, adotam a magia acoplada aos conhecimentos de seu dominador.
Desde então, alquimistas nunca conseguiram descobrir a perfeita fórmula para a elaboração da pedra filosofal, mas encontraram uma finalidade aos seus fracassos com a ajuda de um galho rústico de “árvore tupuaca”. Criava-se assim uma nova arma, ainda que rara, para adornar imperadores, senadores e outros poderosos governantes de Aatuma, dando-lhes a sensação real de soberania e tirania aflorada.
Mas o segredo do sucesso não permanece em sigilo por muito tempo.
A guerra caminha lado a lado com a revelação de uma possível profecia escrita por Efiliseu Volgar, e a conquista de território entre duas raças inimigas farão a incrível árvore imortal ser abalada com a degradação de sua vitalidade ao longo de séculos de abusos e desejos de expansão que fogem à regra, ainda que seus galhos se regenerem a cada esquartejo.
A magia criada pelo homem pode ser superior àquela existente na natureza.
Que digam os alquimistas: desafiam a hierarquia divina com suas habilidades sobre-humanas e desorganizam o equilíbrio entre Ôner e as Nuvens de Saboá, colocando Hur em um atrito infindável com o Deus Maior Allawar.
O alimento perfeito a uma guerra devastadora, cheia de luzes e trevas, resultado de uma descoberta transformadora.

Baseado em trechos históricos de Runa de Yavar – Tomo XII
Extraído do livro “O Cristal Sereno: As Arestas Temporais”
Escrito por Efiliseu Volgar – profeta, alquimista, mago, astrofísico e escritor.
Outono, meados da Era Saxônica Pradus.
Uramesh, Aatuma.

Por RICARDO MICHILIZZI

Nenhum comentário: