segunda-feira, 23 de novembro de 2009

[conto/prólogo] A Queda Imprecisa


Eu tenho uma coragem insuportável. Vou onde estiver o perigo. Como posso? Que mania besta! Ora, a esta altura eu deveria estar apodrecendo no solo infértil, devorado pelos vermes mais asquerosos, decomposto dentre as entranhas deste planeta imundo; mas não. Eis-me aqui: vivo. Em queda-livre. Discutindo comigo mesmo os rumos incertos de minha vida. Aliás, que vida é essa? Eu não amo ninguém, não sou amigo de ninguém, nem mesmo consigo me amar, não sou meu próprio amigo! Sou levado insaciavelmente à morte a todo o momento. E não morro. Constantemente carregado à ruína munido de um desejo absurdo – o desejo de sentir medo. Mas não sinto.
O que sinto então? Apenas desejo, eu sei. Mas é um desejo inquietante e corrosivo. Eu deveria temer a morte, como qualquer ser vivo temeria, presumo. Como um dia temi, lembro-me disso. Mas não a temo mais. Nada mais temo. E por isto busco descontroladamente algo que possa me satisfazer, mas as consequências são minhas cicatrizes e anomalias. Se alguém me visse perambular adentro aos destroços do derradeiro apocalipse, certamente confundiria a mim o anticristo. Não sou. Não sei quem ou o que sou. Meu corpo está deformado. Tantas foram as tentativas de me amedrontar com algo. Desde as mais simples torturas às mais complexas mutilações. Meu corpo não é mais o mesmo. Meu rosto...
Quem eu sou, afinal? O quê eu sou? Respostas. Onde encontrá-las? Não há. Não sei meu nome. Costumo me auto-intitular “Lecsi”. É a marca, o nome ou o slogan da maioria das serras cravadas em minha pele. Todas elas se adequaram ao ambiente. Não ouso em retirá-las. A dor é imensa. Sim, eu sinto dor. Mas do que adianta senti-la se não posso temer o momento precedente? Se eu sentisse medo de sentir dor, certamente retiraria todos os estilhaços, metais, serras, lanças e outras porcarias que eventualmente se hospedam neste corpo inútil e ambulante. Ou quem sabe nem os teria instalado. Mas não... Eu quero o medo. Sentir o medo. Viver o medo! Enquanto isto não acontece, sinto o vento empurrar-me de volta para cima ao mesmo tempo em que meu corpo, mais pesado e indiscutivelmente mais rápido, despenca numa velocidade inacreditável.
Sim, saltei de um gigantesco penhasco onde anteriormente residia uma cachoeira. Pensei que, desta vez, sentiria medo. Eu nunca havia executado este tipo de salto. Sempre ouvi dizer que a primeira vez é inesquecível. Prefiro esquecer. O medo não veio. E depois de tanta automutilação, percebo que não morro assim tão fácil; nem tão difícil. Na verdade, acho que não morro. E não, não consigo “preparar-me” para atingir o solo. Seria normal eu temer o impacto. Seria normal eu partir deste mundo. Mas nada mais é normal como costumava ser antes do fim...

POR RICARDO MICHILIZZI

3 comentários:

DanielFolador disse...

Muito bem escrito, Ricardo! E gostei muito do personagem. E, ah sim, a foto ficou foda xD
Abraços

Cambuí - Minas Gerais disse...

Valeu cara! O personagem é bem interessante mesmo...
Eu só gostaria de terminar a história, mas ta difícil.

Valeu

Unknown disse...

Muito 10! Pra vc terminar é facil, geralmente quando a gente começa a escrever uma coisa, a gente pega o embalo nos pensamentos e vai q vai... é só vc começar! ;)